Entre 2 amores
Testemunho Vocacional
Conheci há muitos anos a Ir. Donzília Natário Vicente, na Casa das Irmãs Dominicanas no Restelo. É uma pessoa que provoca empatia imediata: simples, humilde e de uma generosidade e persistência que, por vezes, toca as raias da teimosia. Natural de Soutosa, freguesia de Peva, Moimenta da Beira, Diocese de Lamego e distrito de Viseu. Nasceu numa família onde já a tinham precedido três irmãos: a mais velha, dois gémeos dos quais a menina morre à nascença. Assim, a Donzília perfazia agora o número de três: viria depois uma quarta irmã. Nesta família, verdadeiramente cristã, ensinavam-se e aprendiam-se os valores humanos e cristãos da honestidade, do respeito e amor pelo próximo.
REMAR CONTRA A MARÉ NA CLANDESTINIDADE
Foi-me pedido pela Irmã Flávia para escrever a história da minha vocação
Gostaria muito de poder transmitir como surgiu a minha vocação, no entanto não é possível pois, como dom de Deus, o chamamento fica sempre envolvido num véu de mistério.
Daí que só se pode transmitir o que ao exterior se refere, como os passos dados para alcançar o objectivo de consagração.
Eu nunca tinha contactado com religiosas. Quando os missionários Combonianos começaram a fazer pregações, na minha terra, durante a Quaresma, a mensagem que transmitiam empolgava-me! Alguém sugeriu aos Pregadores que falassem sobre Vocação Religiosa. E através dessas pregações os meus horizontes abriram-se e comecei a sonhar.
Convicta da frase do Evangelho que diz: “Não fostes vós que me escolhestes fui EU que vos escolhi a vós”, hoje, ao olhar para trás, só vejo beleza, na forma como Deus atua e cativa uma alma sedenta d’Ele.
O que posso dizer é que sentia uma força interior que me impelia a abraçar uma forma de vida cristã mais intensa, diferente daquela que me habituei a ver e viver, quer na família quer na comunidade da minha aldeia.
Havia uma jovem, hoje Irmã Silvina, que estava muito ligada às minhas duas irmãs – a mais velha e a mais nova – mas eu não tinha grandes afinidades com ela. Aconteceu, porém, um dia, a Silvina e eu e a minha irmã mais nova, irmos à Missa à Igreja Matriz de Peva, que é a nossa paróquia e freguesia e, em conversa, descobrimos que desejávamos ser religiosas.
Essa força interior que me impelia levou-me a comportamentos diferentes dos que tive até aí e, à medida que o tempo passava, isso ia atraindo a atenção das pessoas com quem convivíamos diariamente, o que foi motivo de grande inquietação para os meus pais. Apesar de ter sido no lar que desabrocharam os valores da vida cristã, os meus pais de maneira nenhuma quereriam sequer pensar em ver duas filhas religiosas.
NÃO É FÁCIL REMAR CONTRA A MARÉ, sobretudo quando nos sentimos rodeados do amor, carinho e conforto familiar. Mas essa força interior levava-me constantemente a ultrapassar as numerosas barreiras que se iam apresentando ao longo de toda esta caminhada de discernimento e de opção de vida.
Como fazer com todo este segredo? Não sabíamos como agir! Contactar o nosso pároco, nem pensar, pois já havia exemplo do passado em que uma jovem lhe falou da vocação religiosa e logo toda a aldeia ficou a saber. Por outro lado, a reputação das freiras era péssima na aldeia, não sei porquê, toda a gente dizia ao meu pai que “só ia para o convento quem tem desgostos de amor ou não encontra pretendentes para casar". Era um dilema! O meu pai sofria porque nada disso via nas filhas; pretendentes não lhes faltavam e não tinham qualquer desgosto de amor, as suas filhas eram felizes e muito equilibradas. Daí a oposição, a luta, a resistência à nossa ida para o convento. Mas Deus não dá desejos irrealizáveis, foi abrindo o caminho. À medida que o tempo passava os obstáculos amontoavam-se. Ninguém podia conceber que estas meninas pudessem ir para um convento. Era um escândalo para aquela mentalidade.
NA CLANDESTNIDADE
Surgia a necessidade de encontrar alguém que nos pudesse aconselhar e apontar-nos uma luz na travessia do túnel.
Eu tinha uma prima afastada, cuja filha estava no Carmelo de Coimbra, ela era perspicaz no que concerne à vida espiritual e deve ter-se apercebido da nossa inquietação e procurou falar connosco e nós também desejávamos falar com ela. Um dia, já nem sei bem como, conseguimos ter a primeira de muitas conversas. Ela indicou-nos e aconselhou-nos que falássemos com o Pároco de Vila Nova de Paiva para reconciliação e direcção espiritual pois era um sacerdote muito sério e zeloso. E assim fizemos.
Fazíamos vários quilómetros, alta madrugada, correndo altíssimos riscos, para não irmos pela estrada, com receio de sermos denunciadas.
Esse santo Sacerdote, sabendo da luta que travávamos, prontificou-se a custear o que nos fosse necessário para irmos até à casa da Congregação onde iríamos ingressar pois, por motivos compreensíveis, não nos poderia levar até lá.
Entretanto, surgiu outra dificuldade: eu era menor, só aos 21 anos poderia ingressar sem licença dos Pais. Nem as Irmãs da Congregação nem eu, tínhamos tomado consciência do facto. Um dia, tentei falar do assunto, e o meu pai perguntou: “Filha não estás bem connosco, o que te falta?” E chorou. Entretanto, a minha mãe aumentou a resistência e a vigilância. Nessa altura, eu disse à Silvina que fosse, eu iria lá ter no ano seguinte – pensando comigo que, entretanto, essa ideia se desvaneceria. Mas a Silvina quis esperar. Então continuamos a trocar correspondência com as Irmãs, e a ser acompanhadas pelo Sacerdote.
Sabíamos que não queríamos clausura, mas quando a minha prima nos perguntou que Congregação queríamos, ficámos mudas, pois não conhecíamos nenhuma. Ela costumava fazer Termas em Monte Real onde se encontrava com a Ir. São Gonçalo, que era Dominicana, do Picão, e pediu uma foto a esta Irmã. Quando regressou e nos mostrou a foto ficamos rendidas ao hábito branco e véu preto. Então, a seu conselho, começámos a escrever para o Ramalhão, para a Ir. Guadalupe, secretária da Madre Geral, Madre Maria do Sagrado Coração.
Éramos três cúmplices: A Silvina, eu e a minha irmã mais nova.
Com a desconfiança dos meus pais perante o possível cenário da ida das filhas para a vida religiosa, cresceu a vigilância na minha família e as cartas eram quase sempre interceptadas e proibiram-nos de contactar com essa prima. Assim sendo, era a minha prima que recebia as cartas e no-las fazia chegar através de um dos seus filhos, recebia as nossas e as fazia chegar ao Ramalhão sem que ninguém se apercebesse.
Como eu não namorava e não ligava facilmente a namoricos, a família desconfiava, por isso, a correspondência era bem guardada e rigorosamente escondida. E como tudo tinha de ser feito no meio do maior sigilo, na maioria das vezes era de noite que líamos e escrevíamos.
Como a casa dos meus Pais era junto da estrada nacional, embora nós tivéssemos muito cuidado para ocultar a luz, alguém os alertou de que tínhamos a luz toda a noite acesa. A minha mãe, desconfiada do que estávamos a fazer, às vezes levantava-se de noite ia-nos perguntar se estávamos bem, mas o intuito dela era apanhar- nos em flagrante e ver se encontrava algo.
Completei os 21 anos a 22 de setembro e, a 3 de outubro, saímos. Para proteger a minha irmã mais nova deixei-a fora dos nossos planos, nesta fase.
Para este dia 3, estava combinado um passeio com os meus pais, toda a família e amigos. Eu deveria ir também mas, na própria da hora, disse aos meus pais que não ia porque tinha fortes dores de cabeça - e não eram pequenas. Os meus Pais logo disseram: estás doente, não vamos, vais ao médico. Não, não, respondi aflita. Isto passa; vou deitar-me mais um pouco e tudo ficará bem, vão tranquilos. Esta era a estratégia para a fuga. Encaminhámo-nos para os montes às 15h00 para que as pessoas pensassem que íamos no autocarro.
Ficámos escondidas nos pinhais até às 2h00 da manhã, hora em que a prima e o marido nos foram buscar, e levaram para a sua casa!
Eu tinha deixado uma carta escrita, onde explicava que tinha tirado 700 escudos para a viagem, para comer e mais alguma necessidade. Mais tarde, soube que o meu pai chorava e dizia: porque não levou todo o dinheiro que havia no cofre? Anda por lá a passar fome! Foram dias muito difíceis para eles e para mim. O meu irmão tentou por todos os meios que a minha irmã mais nova lhe dissesse para onde eu tinha ido, mas ela, na verdade, não sabia o lugar para onde tínhamos ido. Foram ter com o Pároco, que também nada sabia, e lhes disse que éramos maiores, logo, nada havia a fazer. Ameaçaram-no que iam entregar o caso à Polícia. Mas ele estava completamente inocente, nada sabia.
Foi uma revolução na aldeia. Nessa noite a povoação ficou deserta, toda a gente saiu em busca das duas desertoras. Estávamos escondidas no sítio combinado – no meio do mato. Pessoas a pé, de bicicleta, motorizadas, procuraram até de madrugada. Alguém se postou na estrada e revisava todos os carros e autocarros que passavam em busca das desertoras. A certa altura, parou uma motorizada, mesmo quase junto de nós, era nem mais nem menos o meu pai e o sogro do meu irmão, nós nem sequer olhávamos. Mas ouvi a voz do meu pai a dizer: “Já que saiu de casa, que seja muito feliz” e, para nosso bem, seguiram em frente. Eu sufocava em lágrimas, mas não me arrependia, as saudades já se faziam sentir ao saber os meus pais mergulhados na maior das tristezas; foi a maior prova e certeza de que era Deus a agir em mim. A Silvina não parava de falar, mas eu não conseguia dizer palavra. O sogro do meu irmão chegou a pagar para vigiarem a casa da minha prima onde, na verdade estávamos, pois nessa mesma noite, o casal, antes do romper da aurora, introduziu-nos na sua casa, aonde ficámos oito dias escondidas.
Creio que a minha saída ajudou a preparar a saída da minha Irmã mais nova, daí por meio ano. Se ela já tivesse atingido a maior idade penso que talvez nos tivesse acompanhado, uma vez que eu, um ano antes, tinha pedido autorização aos meus pais para ir e eles não me permitiram, a minha irmã teria de esperar também até à maioridade.
Mas Deus sabe o que faz, já que é Ele quem nos escolhe e atribui uma missão.
Foi uma semana de pré-noviciado, num sofrimento indizível, estar tão perto de casa e saber o sofrimento da família e aguentar, foi duríssimo. Também os grandes momentos de Jesus ocorreram de noite. E o discípulo não é mais do que o Mestre. Volvidos oito dias, de madrugada, veio um táxi de Moimenta da Beira, que nos levou até Coimbra. Passamos pelo Carmelo. Gostei muito daquele silêncio. Ao chegar a Fátima, deparei-me com a confusão dos hóspedes, dos peregrinos a chegar, e deixei escapar o desabafo que me parecia gostar mais de Coimbra. Então, esta frase deixou preocupada a minha prima que ficou uns dias connosco, em Fátima. Quando a Minha Irmã mais nova teve oportunidade de entrar para as Irmãs Clarissas de Monte Real e eu tive a oportunidade de a visitar, uma das Irmãs, levou-me para outra sala e perguntou-me se queria ficar, agradeci, mas não quis deixar as dominicanas.
Passado algum tempo fomos para o Restelo. Foi difícil, vínhamos de uma vida e ambiente campesino… No 1º Natal, as saudades eram tantas, eu chorei, chorei desalmadamente. As Irmãs perguntaram-me se queria voltar para casa. Eu estava feliz, mas tinha muitas saudades, nunca antes tinha passado nem que fosse uma noite fora da família.
Um dia, tivemos a agradável surpresa da visita do Padre Joaquim Rodrigues da Cunha, nosso confessor e amigo. A alegria foi tanta que, apesar de nesse tempo não se usar o costume de abraçar um sacerdote, abraçámos -nos sem qualquer preconceito. Uma outra vez foram os meus pais que me visitaram. Quiseram que fosse com eles passear a Lisboa, a Madre Assunta, receosa que me viessem raptar, enviou outra Irmã a acompanhar-me, depois percebi que, de facto, eram essas as intenções da minha mãe quando ouvi o meu pai dizer-lhe: “Não, ela fica aqui, porque está feliz!”.
Iniciámos a formação no Ramalhão. Entretanto foram marcados os exames que coincidiram com a data das profissões. Perguntaram-nos se queríamos professar ou fazer primeiro o exame, nós escolhemos o exame. Desta forma, a Silvina fez primeiro os votos pois eu optei com outras colegas fazermos primeiro o exame de francês. A 21 de setembro de 1971, festa de São Mateus, professei eu, a Ir. Amália, a Ir. Leopoldina, a Ir. Glória, e a Ir. Zulmira.
Fiz o Noviciado no Ramalhão, onde comecei a trabalhar na Secretaria, ainda júnior, a pedido da Ir. Guadalupe e aí permaneci durante 11 anos. Fiz os votos perpétuos também no Ramalhão a 4 de setembro de 1977. Foi a Madre Sagrado Coração quem nos preparou - eu tinha por ela uma enorme admiração e afecto filial. Quando, em Janeiro, ela morreu num trágico acidente, foi um tremendo choque para mim.
Se hoje tivesse de optar de novo faria a mesma opção, pois Jesus é claro no Evangelho: “Se alguém deseja seguir-me e ama o seu pai, sua mãe, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até mesmo a sua própria vida mais do que a Mim, não pode ser meu discípulo”.
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