Memórias de um Verão

Confortavelmente desconfortável 

Todas as férias de Verão da minha vida seguiam um ritmo idêntico, ir sair com amigos, ir à praia, ficar em casa na preguiça distraído pela televisão ou com o computador, o que qualquer pessoa da minha idade faz. Mas estas actividades por muito divertidas que sejam não me bastavam, faltava-me aventura, faltava sentir-me fora da minha zona de conforto, estava farto de ver as mesmas caras, os mesmos amigos, os mesmos locais, as mesmas festas, as mesmas actividades fúteis que aceitamos como quotidiano porque a sociedade assim o ditou. Sabendo isto inscrevi-me na peregrinação a pé a Santiago com o Centro Universitário de Fé e Cultura (CUFC) na expectativa de me afastar da repetitividade do meu dia a dia, com a esperança infantil de encontrar algo que me fazia falta.


 Uma semana em andamento

Nas semanas antecedentes da data prevista para a peregrinação houve várias reuniões e actividades de preparação para a peregrinação, ouvimos listas infindáveis de conselhos sobre como evitar tudo de mal e aproveitar o que era de bom. Por causa destas pequenas lavagens cerebrais que levámos, cheguei a fazer alguns passeios com medo que o meu corpo de preguiçoso cedesse ao extremo exercício físico que a caminhada ia exigir.

No dia 23 de Julho tivemos a última reunião, visto que a odisseia começava no dia seguinte. Este dia foi algo estranho pessoalmente, era o meu aniversário e passei-o com 30 estranhos, já aqui começava a sair da minha zona de conforto e ainda nem estávamos fora de Aveiro.
Marcos Pires

Chegou o dia D, hoje era a doer. Neste dia e nos dias seguintes acordar extremamente cedo era o pão nosso de cada dia, não me recordo da hora exata a que me levantei mas lembro-me que no caminho para a estação de comboio tomei café num café que ainda estava a abrir e tinha sido o primeiro cliente do dia. Chegando à estação havia uma certa senhora de nome Natália que tinha mais energia do que todos os outros participantes em conjunto e, a incentivo dela e vendo todos os outros a fazerem o mesmo, cedi pela primeira vez às atividades de dança que nos diziam que era para “aquecer os músculos” e que na altura achava profundamente ridículas. De certa forma estava certo, as danças são ridículas, mas ajudam a descontrair e a quebrar o gelo entre as pessoas. 

Chegando a Vigo, Espanha, começámos a andar. Andámos uma média de 20 quilómetros por dia durante cinco dias, e todos os dias resumiam-se facilmente em: acordar cedo, andar até à hora de almoço, andar perdido pela nova cidade onde iríamos pernoitar até encontrar o local onde íamos efetivamente dormir, e finalmente o descanso merecido. Depois dos almoços vinham as enfermeiras rebentar bolhas dos pés, podíamos ainda ir visitar a cidade se ainda tivéssemos vontade de andar, ou convivia-se, ia-se a um bar beber finos com o padre JAC. Uma das partes que achei importante e indispensáveis foram as orações
conjuntas, a partilha de casos pessoais, o que à primeira parece algo demasiado constrangedor e pessoal depois percebe-se que a partilha ajuda a recuperar forças. A melhor parte desses momentos de partilha foi quando nos foram dadas as cartas feitas pelos pais e entes queridos a demonstrar o amor destes e a fazer-nos perceber que mesmo longe continuam conosco.

No último dia que tivemos de andar pudemos ver Santiago de Compostela ao longe e a aproximar-se a cada passo que dávamos, até que finalmente chegámos à catedral. As emoções eram muitas para todos, mas não para mim, eu apenas senti que tinha completado mais uma tarefa difícil, que apenas me elevou a autoestima. Só mais tarde é que me apercebi do que acontecera e do que tinha acabado e fiquei um pouco triste, isto porque o meu objetivo não era o de chegar onde estávamos mas sim o de fazer o caminho, caminho este que estava agora concluído, visitar a catedral foi apenas um extra.

Depois de passar um último dia na cidade de Santiago de Compostela a fazer compras, visitar locais e beber uns finos num bar que tinha a parede coberta de moedas pretas como símbolo de boa sorte, chegara o momento de voltar para trás. Apanhamos um comboio que ironicamente nos leva Vigo, onde começámos a caminhada de cinco dias e que demorou apenas horas a chegar, e de seguida fomos diretos para Aveiro.

Regresso a casa 

O regresso a casa significou o fim de tudo, a aventura estava terminada, hora de voltar à monotonia diária. Por umas duas semanas se prolongou esta melancolia e saudade das pessoas que ficara a conhecer, pessoas estas que me deram momentos eternos como os jogos de cartas em viagens de comboios que nos faziam desejar que estas fossem mais longas, as necessárias visitas às enfermeiras para rebentar bolhas dos pés e fazer tratamentos (especial agradecimento à Sara Costa e Ana Lúcia “Mãos de Ouro”), as piadas e conversas a meio da noite e finalmente e sem faltar os ataques de autismo que iam acontecendo (principalmente do Luís Almeida).

Foto de Sara Costa, Jantar partilhado
Não me conformei, não queria que a peregrinação fosse a única grande aventura do meu verão, cancelei planos e movi datas no calendário para poder participar numa outra atividade que desconhecia completamente o seu propósito e que apenas quis ir por razões egoístas de não me querer fechar de novo nas minhas rotinas, o Dominismissio.

Dominismissio 

Esta foi uma semana passada no Alentejo, mais concretamente na cidade de Estremoz, e que foi muito diferente da peregrinação. Na caminhada o objetivo era caminhar e refletir, mas agora o nosso objetivo era ir em missão, dar de nós aos outros e depois refletir.


Desta vez a ida foi de autocarro, o que não impediu que se fizessem de novo os jogos e brincadeiras de viagem que tanto se aprendeu a gostar. Chegando a Estremoz sentimos o

calor extremo que por lá havia e, escolhendo o sítio onde se ia colocar a cama temporária na casa que nos tinha sido emprestada, a missão estava agora a começar. Neste tipo de atividade ninguém tem a mesma experiência, todos tiveram diferentes tarefas em diferentes locais com outras pessoas, pelo que apenas descrevo aquilo pelo que apenas eu passei.

Dum grupo de quase trinta pessoas foram feitos diversos grupos para melhor gerir quem faz o quê das tarefas tanto domésticas (lavar louça e fazer comida) como outras (preparações de orações). Fui sortudo no grupo que me calhou, coloco aqui os nomes dos membros que eram e sempre serão do meu querido grupo: a Daniela, a Teresinha e a minha amiga de cinco anos Ana Raquel. Juntos tivemos de lavar pratos que continuavam sujos, fizemos comida que só ficou boa porque não fui eu a fazê-la e preparámos orações que nos demoravam três vezes mais tempo a preparar do que era necessário.

O que realmente fomos fazer a Estremoz foi dar do nosso tempo a quem precisava, eu pessoalmente fui a quase todos os locais que eram possíveis ir em missão e ajudar: fui a lares de idosos animar-lhes o dia com uma simples conversa, canção ou desenho; fui a várias casas de pessoas debilitadas fazer-lhes companhia, numa das casas a que fui quase que adormeci a ouvir a residente que claramente precisava de desabafar e que falou durante horas sem nos deixar a nós responder (não percebo como é que a Ana Isabel se aguentou, mesmo estando doente);  pintei bancos de jardim; visitei um lar de doentes com necessidades especiais, neste fui completamente apanhado de surpresa, foi um dos dias mais complicados da minha vida (louvo a força da Laura por conseguir lidar de cara alegre com estas pessoas); e finalmente e por repetidos pedidos meus à Irmã Flávia, a responsável pela designação de quem vai para onde e em que dia, passei o dia num ATL a brincar com crianças. Neste último local muita coisa aconteceu, comigo apenas estava a Inês Borralho que perdeu todos os jogos em que estava numa equipa diferente da minha, fizemos várias brincadeiras com os pequenitos em que houve choros e risos, mas o momento que mais me marcou foi quando me sento ao pé dum rapazito, David para ser mais concreto, e este me pergunta “onde moras?”, ao que lhe respondo “em Aveiro”. O que ele diz a seguir deixa-me completamente desarmado e boquiaberto, faz uma pequena pausa dramática e confiantemente fala “eu quero ir viver para Aveiro”.

Mas no tempo que lá estivemos não foi só “trabalho”, também tivémos direito a  descanso no Domingo, onde nos refrescamos na piscina pública, fizemos do almoço um piquenique no relvado adjacente à piscina e, de novo sem poder faltar, jogámos cartas. A única coisa que houve de mal neste dia foi a despedida da melosa da Ana Emanuel. Para além deste descanso todos os dias havia também buracos no itinerário que nos permitia fazer o que bem entendêssemos, foi nesses tempos que aprendi a tocar umas poucas músicas na guitarra com a ajuda do Ivo e da Claudia.

Foi das semanas mais importantes da minha vida, foi a semana em que vi mais pessoas a chorar e rir, a semana em que tive a maior risada da minha vida graças ao Luís, a semana que mais me ficou gravada no coração e provavelmente a semana em que mais cresci. 

 Regresso definitivo a casa 

Quando regressei a casa senti que não era a mesma pessoa, que havia mais na vida do que trabalho, que não é preciso conformar-me com a vida que tenho e com os amigos que me rodeiam, posso mudar o que desejar, basta que realmente o queira mudar e não me deixe ir com a corrente. 

Participação no "Jub-Fátima", atividade da Pastoral Juvenil Nacional
Desde que o verão acabou que noto uma maior confiança, os pequenos medos que é normal ter já não me afetam como me afetavam, falar com estranhos já não me é estranho, agora até acho divertido fazê-lo, o medo de não ser aceite deixou de existir, vivo a vida menos preocupado com as coisas fúteis e pequenas, vivo uma vida mais feliz.
Passeio a Arouca
Agradecimentos Especial agradecimento aos meus queridos pais pelo apoio que me dão diariamente, e à Irmã Flávia por não ter aceite os meus “nãos”.
Marcos Pires 

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