ENTRE TANTOS - Diários

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A maior parte das pessoas, acho que o posso afirmar, já tentou algum dia escrever um diário: não necessariamente um daqueles de escrever todos, todos os dias mas algum caderno, ou até gravador, que nos ouça quando precisamos. 
Eu, quando era pequenina, era o que mais queria. Manter um diário, durante um ano, todos os dias, regularmente. Um diário ultrassecreto, com cadeado para fugir às cusquices da minha família (eu, que era a maior cusca!), com páginas perfumadas. Começava impreterivelmente no dia 1 de janeiro, à espera que um novo ano significasse uma maior motivação. Tenho dois ou três começados sempre com a descrição desse dia 1, o aniversário da minha irmã, em que os dias eram sempre de festa e de tardes passadas à lareira em família. Nunca durou mais que uns dias, tal a exigência que me colocava. E se durava mais do que um mês era porque, nos dias em que não escrevia, fazia questão de me desculpar nos dias seguintes: "Desculpa, querido diário, hoje foi um dia longo. Amanhã escrevo." (existem entradas sucessivas com esta frase!) 
Foi então que tentei uma nova abordagem, visto que esta não estava de facto a resultar: a de escrever apenas quando algo muito forte que vivia ou sentia me obrigava a essa catarse que só o papel e a caneta conseguem em mim. Daí nasceram textos profundíssimos de uma adolescente em plena fase de descoberta de si mesma, que questionam tudo. 
E depois parti para Timor, um tempo de realização pessoal até neste campo. Finalmente alcançara o que sempre procurara: mantive um verdadeiro diário, com entradas realmente diárias, sem desculpas. Aí, sempre fui mais forte do que o cansaço de um dia longo ou da preguiça de ter tanto para escrever porque tinha tanto para contar. Persisti, gravando-me à noite com a voz arrastada de sono para no dia seguinte transcrever, ou escrevendo literalmente até adormecer em cima do pobre caderno. Mas aquele diário continha as minhas histórias, os meus sentimentos, a riqueza da missão em Timor, algo que, desde início, senti que gostaria de querer regressar. E enquanto não o faço fisicamente, às vezes é bom abrir ao calhas e voltar lá "por um dia", lendo o que escrevi com tanto afinco a transbordar de gratidão.
Agora já não escrevo diários mas semanalmente saem estes "Entre tantos", estas crónicas da minha vida, dos entretantos desta jovem entre tantos, cheia de reflexões e apontamentos pessoais. Já não escrevo diários mas arrisco uma vida mais orante, onde partilho tudo, desde as maiores frustrações às maiores concretizações, com Aquele em quem sempre posso confiar: o meu bom Deus, pai, filho e Espírito Santo. 
Somos crianças e reduzimos a oração a um conjunto de fórmulas do Pai-Nosso e Avé-Maria que pouco entendemos o sentido. Dizem que temos um Amigo lá em cima, pronto para nos ouvir, mas é-nos difícil falar com Ele quando não o conseguimos escutar de volta. Porque o silêncio ainda nos é um mistério enorme por desvendar e sentir que essa voz vem mas é de dentro de nós e que temos que a deixar sair destemidamente é algo que ainda nos confunde. 
Rezar é como quem escreve um diário, não para si, mas para o partilhar com quem lhe dá a vida e lhe dá sentido. Que não precisa que chegue o fim do dia para fazer "o relatório", mas que ao longo do dia, consegue espontaneamente bendizer, louvar, pedir e agradecer (pel)as situações. 
Rezar é como quem cuida um diário, que reconhece a importância de cada entrada para melhor olhar a sua vida num todo posteriormente. Esse é o seu objetivo, admitindo que haverá momentos em que não o conseguirá cumprir, sem deixar que à primeira ou segunda falta desista dele, achando que afinal não é algo para si. 
Rezar não é fazer o texto bonito para a aula de Português, que obedece às regras todas dadas pelos professores e que escreve o que entende que eles gostariam de ouvir; é antes deixar a caneta fluir, sem grandes pretensões, rasurar o que for preciso, meter cruzes pelo texto todo porque nos esquecemos de dizer algo na altura "certa", é acrescentar "PS" a torto e a direito porque, quando julgamos ter chegado ao fim do discurso, é que surgem mais e mais coisas para dizer. 
Rezar é deixar que o coração fale e é aceitar que por vezes nos sentimos uma folha de diário em branco, sem nada para escrever, sem nada a acrescentar, sem nada sentir. Mas rezar é estar ali, mesmo desalentados, a encará-la, de corpo e alma, porque por vezes basta uma palavra, que nos invade como que por inspiração divina, para desbloquear tudo. 
Rezar é fazer aqueles "Bullet journals", agora tanto na moda: os filmes vistos/por ver, os hábitos a adotar, as músicas marcantes, as tarefas diárias, desde o pagar a conta da luz ao ligar à amiga para combinar as férias, os locais a visitar, as citações preferidas, os objetivos de poupança a atingir, os aniversários dos que nos são queridos… É colocar tudo o que é a nossa vida no de mais rotineiro e insignificante tem em comum com quem nos quer tanto ouvir e conhecer. 
Dizem que Deus já conhece tudo e que deve ser bem aborrecido ouvir tantos repetirem-lhe o que Ele já sabe de ginjeira. Mas também dizem (e a Bíblia, Sua Palavra, confirma-o) que Ele gosta de o ouvir de nós, pela nossa perspetiva, com aquela postura de pais/irmãos mais velhos que paciente e amorosamente ouvem os nossos dramas infantis e secretamente se riem deliciados com a nossa sinceridade e genuinidade. 
Quando há arrumações a fundo cá por casa, que reviram caixas e caixotes, os meus diários falhados e os da minha irmã costumam surgir à tona sem avisar. Solenemente, paramos tudo para os desfolhar maravilhadas com aquilo a que dávamos valor: a injustiça que foi alguma de nós ter ficado com as culpas dos disparates da outra ou da vez que conseguimos convencer os nossos pais a ir jantar ao McDonald's depois de um dia longo de passeio. E rendemo-nos perante a beleza que é crescer. Tal como Deus sempre se renderá, vos garanto, perante a beleza que nos é ver crescer :)

Ana Emanuel Nunes

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