ENTRE TANTOS - 19.03: Dia do "Vai"
Uma pessoa fica em casa durante tanto tempo sem sair e perde a noção do tempo. Hoje é dia 19 de março, dia do pai! Claro que já não estamos na primária, onde duas semanas antes somos avisados de que o dia se avizinha e que é preciso meter mãos à obra para fazer a lembrança: desde a invariável gravata num lata decorada para meter lápis e canetas até ao mais arrojado jogo de damas. Talvez este ano possa ser este texto a minha lembrança!
Detive-me então a pensar no que de mais bonito o meu pai já me disse. Temos momentos muito especiais, desde a nossa forma tão peculiar de dar beijos até aos momentos de perdão depois das nossas discussões. Mas lembro-me perfeitamente do dia em que lhe perguntei o que ele acharia se eu fosse em missão e da resposta ter sido: "Vai." O meu pai tem essa mania, de me desarmar perante perguntas tão complexas com respostas tão simples. Só isto: vai. É sempre essa resposta quando se trata de ir atrás dos meus sonhos e de levar avante as minhas escolhas. Essa resposta que é como na música, o tema principal, que por vezes pode aparecer transformado em mil e uma variações. Neste caso, algumas das mais recentes variações são "a que horas é o teu autocarro? 6h da manhã? Então eu levo-te para não teres que sair tão cedo e perder tempo a estacionar", "está pronta às 15h que nós vamos contigo à Sertã para ver o concerto dos teus miúdos" ou "já tratei de tudo por causa do seguro do teu carro novo". Assiduamente lá está, sempre na vida, no que há de mais extraordinário ao mais rotineiro.
Por vezes, sou mais parecida com ele do que gosto de admitir. Mas sou-lhe imensamente grata (a ele e à minha mãe, que eles só são invencíveis juntos) por me ter ensinado o que significa ser responsável, não à custa de demasiadas palavras duras e severas mas sobretudo pelo testemunho. Ensinou-me a dar o melhor em tudo o que faço, a honrar os meus compromissos, a perceber que há "sins" que é preciso saber dizer pelos outros, mesmo que implique levantarmo-nos do sofá onde já estávamos há tanto tempo sentados confortavelmente. E que, por muito que custe, há certos nãos que tem que ser ditos para cuidarmos de nós e voltarmos à tona fiéis a nós próprios.
Ensinou-me que não há o tempo certo, que as oportunidades são o que fizermos delas e que o nosso trabalho nos leva longe, mais longe do que alguma vez poderíamos esperar. Que vale a pena trabalhar e estudar arduamente e que há muito orgulho numa filha de ver o pai licenciar-se aos 50 anos, usando capa e batina como manda a tradição. Que nunca é tarde demais para aprendermos gaita de foles, o instrumento que sempre se ouviu com maravilha e que valeu a pena investir para que a filha fosse professora de música para agora lhe dar umas dicas em casa, para além do professor.
Sim, ensinou-me isso mesmo: que somos responsáveis pelos outros, pelos nossos, que às vezes é necessário abdicar para os ver bem e que isso basta. Que a distância nunca é desculpa para se estar longe de quem se ama e que se pode estar junto em gestos tão simples, como ligar para os seus pais diariamente quanto mais não seja para perguntar pelo tempo ou pelo que vai ser o jantar.
Ensinou-me a importância de querer saber do mundo, de ouvir as notícias e de saber que as coisas vão mal porque estão mal para as pessoas do outro lado do nosso mundo, porque a guerra continua de tantos modos e em tantos lugares… Que sou responsável por isso também!! Neste tempo de quarentena, em que o Covid-19 não dá tréguas, perguntam-me se estou preocupada. Sim, estou preocupada com os sem abrigo que não tem onde se recolher, estou preocupada com os migrantes em campos que estão confinados a espaços tão pequenos, sem condições de higiene e saúde, preocupam-me os idosos isolados… Preocupa-me os desamparados sem esta proteção e cuidado paterno que eu tenho a graça de ter. Para esses, o meu pai já não tem resposta pronta, tem um coração sensível. Ele, que nem em filmes, consegue suportar ver tamanha injustiça sem que isso o afete.
Pai, sei que me vais continuar a dizer "Vai" infinitas vezes. Afinal, ofereceste-me um relógio no Natal com um mapa mundo no mostrador porque dizes que sou do mundo. E peço que o continues a dizer mesmo que eu hesite com medo ou que me distraia no insignificante.
Talvez pai e vai não rimem em vão. São ambas palavras mágicas que tornam tudo mais fácil, são ambas palavras da mesma canção - que me embala, envolve e enche de amor.
Ana Emanuel Nunes
Ana Emanuel Nunes
PS: Aqui está a primeira música do Dia do Pai que cantei ao meu pai!
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