Será que a genética determina quem sou? - Parte I

Será que está mesmo tudo nos genes?

Texto sociológico elaborado por Beatriz Marques




No decorrer da história da humanidade, foram muitas as (re)construções científicas que procuraram explicar diferentes dimensões da vida humana como a estratificação social e o livre arbítrio. Contudo, em inúmeras ocasiões este processo esteve longe de ser considerado unânime.

No século VI a.C., a China apresentava uma cultura política extremamente avançada, marcada, no entanto por frequentes tumultos. Já Confúcio (551-479) promoveu a edificação de uma sociedade harmoniosa, justa e igualitária através da filosofia. Esse entendimento constituiu uma preocupação constante ao longo dos tempos, o que provocou inúmeros conflitos político-sociais, em que se destacam os movimentos humanistas por de trás das revoluções burguesas de Inglaterra (século XVII), França e América do Norte (século XVIII).

Na teoria da evolução, publicada em “A origem das espécies” (1859) por Charles Robert Darwin (1809-1882), as condições ambientais determinam se uma característica será benéfica (ou prejudicial) na reprodução de um ser vivo. A primeira vez que foi apresentada à comunidade científica sofreu críticas, não só da parte desta, como também da própria Igreja Católica.

No final do século XIX com a popularização do neodarwinismo, a tese da seleção natural passou a sustentar a ideologia de que a sociedade hierárquica era um fenómeno natural, já que o ser humano se distingue pelas suas habilidades fundamentais, que por sua vez são diferenças inatas, ou por outras palavras, biologicamente herdadas. Emerge assim o darwinismo social, em que as espécies mudariam e evoluiriam num mesmo sentido, mas apenas as melhores e mais fortes sobreviveriam, ou seja, pertenceriam a estágios superiores. De maneira análoga ao desenvolvimento do Homem, prevaleceriam as sociedades mais capazes visto que as restantes se extinguiriam devido à dificuldade em superar os obstáculos naturais. Consequentemente, justificar-se-ia a organização e as diferenças de poder na sociedade a partir da carga hereditária de cada um.

A partir da segunda metade do século XX, visualizou-se uma intensa transformação mundial, resultando quer em aceleradas mudanças científico-sociais quer na necessidade de unidade e interdisciplinaridade nas diversas áreas do saber. Surgem assim teorias científicas como tentativa de explicar factos e/ou porções de uma dada realidade, que levam os próprios cientistas a adotarem determinada postura face às explicitações expostas.

Nesta perspectiva, Lewontin refuta o determinismo biológico, subjacente na tese de seleção natural e sobrevivência do mais apto proposta pelo naturalista britânico. Apela a uma reflexão crítica no que diz respeito à relação biologia-ideologia, situando-a no contexto da cultura política que utiliza o slogan “está tudo nos genes” para justificar as desigualdades sociais. (1)


Cepticismo razoável

As entidades responsáveis por refletir e reforçar o respeito pelas visões e valores dominantes e por explicar o mundo devem derivar de fontes exteriores à luta social do homem comum, descendendo de uma fonte supra-humana cujas declarações, regras e resultados transcendam qualquer possibilidade de acordo ou erro humano, tendo em conta o período histórico em questão. A partir do império de Carlos Magno a religião cristã cunhou a paz como o bem social último e a justiça como ferramenta imprescindível caso se atuasse em nome dessa mesma paz. (2)

Atualmente, a ciência, atividade humana integrada quer na estrutura das restantes instituições quer nas predisposições derivadas da sociedade, tem também capacidade de produzir coisas novas, melhorar a qualidade da vida, moldar o modo como se enfrenta o quotidiano e formular teorias que transformam o dia-a-dia através da prática, ou seja, que advém da tradução direta da experiência social. Por conseguinte, implica o dispêndio de tempo e dinheiro. Porém, a sociologia e a economia - forças motrizes da ciência - têm o poder de utilizar as ideias, conceitos e posições científicas que mais lhes convém de forma a legitimar determinadas decisões. Apesar de existirem instituições de legitimação social capazes de prevenir conflitos de interesses e que apelam por ações de justiça e lealdade, verifica-se que o bem-estar físico e psíquico é distribuído de forma desigual. Impera pois uma obrigação superior em comunicar a verdade em prol de qualquer consideração política, ou seja, o produto da ciência tem de resultar numa verdade universal. Como a sociedade é consequência das propriedades individuais, visto serem as pessoas a composição desta mesma sociedade, há a necessidade absoluta de satisfazer a liberdade de cada um, pois o indivíduo é a sua instância principal (átomo social). Considerando esta compartimentação, a compreensão da própria natureza é obtida pela sua divisão em domínios autónomos independentes. O estudo separado das propriedades dos objetos constituintes de agregados maiores permite isolar e simplificar a complexidade que lhes é inerente, o que simultaneamente pode destruir algumas características, conferindo-lhes um caráter reducionista. (2)

No mundo em que se habita, cria-se mais mundo através das realizações dos seus habitantes. Estes assumem uma postura de fonte causal de todas as propriedades, em que o que lhes é exterior é composto por problemas que experimentam como objetos e o que lhes é interno é composto por genes que permitem compreender o que cada qual é. Por conseguinte, caso se possuam genes vantajosos (interior) na resolução de determinados problemas (exterior), estes auto-replicam-se molecularmente e são transmitidos à descendência. A nível elementar, os genes utilizam, como veículos temporários, os indivíduos. Estes últimos por terem preferências e comportamentos particulares determinam coletividades e culturas. Depreende-se assim que a sociedade é resultado de comportamentos individuais e que como estes formam as sociedades, estas são feitas por genes. (2)




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1. Karam, Cinara Cavalheiro; Ramos, Marta Leite (2012) A Biologia como ideologia: contra-argumentos para a desigualdade social. Vittalle, Rio Grande, 24(2): 31-41.

2. Lewontin, R.C. (março de 1998) A Biologia como ideologia: a doutrina do DNA. Lisboa: Relógio D´Água Editores pp. 18-65.

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