ENTRE TANTOS - Mundo:Todos=...
Para quem nunca foi grande fã das
aulas de matemática, muitas vezes deve ter sido martirizado com a frase “anda
lá, matemática é muito importante, está presente em tudo na vida!” enquanto
pensava “quero é ver-me livre dela na minha vida…!” Eu, porém, fui das que
sempre adorou: gostava de todas as matérias, mas lembro-me que as equações me
davam um gozo imenso, ficava completamente abstraída nos números. Aliás, até
lamento não ter ido além da matemática do 9ºano, mas opções maiores se
levantaram das quais não me arrependo.
Por falar em 9ºano, guardo com
carinho os meus tempos de adolescente, esses tempos que sonhamos com o primeiro
beijo mesmo quando as nossas paixões não são correspondidas, quando começamos a
querer estar sempre bonitas, com os nossos vestidos mais singelos, mesmo quando
as borbulhas do acne e o cheiro a transpiração não passam apesar de todo o perfume,
desodorizante e cremes (as hormonas são o diabo!). Sobretudo, guardo dos tempos
de adolescente os dilemas de alguém que tem de tomar decisões verdadeiramente
decisivas para o seu futuro (passo a redundância), a exigirem-nos que sejamos
pequenos adultos e percebamos o nosso lugar no mundo quando na verdade não
passamos de crianças ingénuas, inseguras do que gostam e do que sentem porque
ainda estão a olhar o mundo e a descobrirem-se.
Bem, isto tudo para vos contar que
no 9ºano, num desses momentos em que o coração adolescente se enche de
dramatismo, quis escrever um texto, mas só a matemática me ajudou a transpor
para o papel com rigor aquilo que sentia. Perpetuei então a seguinte equação:
“Mundo+Eu=Mundo (=) Mundo-Eu=Mundo”
O tempo passou e, já não como
adolescente mas sim como jovem que continua a olhar o mundo e a descobrir-se
(alguma vez pararei?), não creio na exatidão do que escrevi. Mas, perante tudo
o que temos vivido, a mesma veio-me à memória de uma forma inconsciente e
tratei de saber porquê.
Eu sentia-me invisível. Não por falta de amor, não por falta de confiança, mas por impotência. Por sentir que a pequena gotinha que era no oceano, por sentir que o pequeno pólen que era numa flor eram tão insignificantes que ninguém daria pela sua falta, que não marcavam a diferença. Queria salvar todas as crianças da fome, queria ir tapar o buraco do ozono e salvar os meus queridos ursos-polares, queria parar com as guerras do mundo inteiro, queria parar com a discriminação e com os preconceitos em relação a tantos que sabia humanos. E nestes tempos que correm, onde voltamos a ter de falar de racismo e preconceito porque sim, eles existem - entre os meus, na minha escola, na minha cidade, no meu país e em todo o mundo, até em mim, mesmo sem querer - gostava que ninguém se sentisse visível apenas para ser motivo de chacota, de gozo, de violência.
É impossível não reparar num
cabelo loiro no meio de morenos. É impossível não reparar num negro no meio de
caucasianos. É impossível não reparar num homem alto no meio de mulheres baixas.
É impossível não reparar numa pessoa com roupas tão coloridas no meio de uma
multidão vestida de preto. É impossível não reparar. O que nos diferencia em
todos os aspetos do que somos torna-nos visíveis. E a atitude que adotamos
perante essa diferença é que define aquilo que o mundo pode ser: um lar aberto a
todos embelezado pela riqueza da diversidade de cada um ou um edifício onde
vivo com os que alego serem iguais a mim, numa divisão que é nossa, de acesso restrito,
onde ninguém pode entrar, mas de onde não posso sair.
Acredito que para muitos que
sofrem de discriminação diariamente fosse mais fácil passar pelo mundo
completamente invisíveis a estes olhares de julgamento. Que pudessem viver
tranquila e despercebidamente o seu quotidiano pois era sinal de que eram
aceites e acolhidos por serem quem são: únicos, diferentes, especiais. Quando estive
em Timor, senti isto na pele. Era inevitável não ir ao mercado ou à missa sem me
aperceber das pessoas a olhar para mim e chamar outros para notarem na
estrangeira, sussurrando ou até gritando para chamarem a minha atenção “malae”.
Lá, felizmente, nunca o senti que o diziam com desprezo ou com um “volta para a
tua terra” implícito; pelo contrário, se há coisa bonita que guardo é o ter-me sentido
acarinhada por todos. Mas, habituada a um certo anonimato, uma rapariga morena,
estatura média alta, um banal bom (sabem?), confesso que em muitos momentos foi
difícil lidar com o facto de agora ser eu das mais diferentes: foi necessário
aceitar a minha própria diferença.
Ser mais um na multidão. Uma
expressão controversa. O que muitas vezes é mais seguro ser, porque não nos
implica, porque não nos responsabiliza. O que mais nos inquieta não ser porque parece
não fazer sentido a minha existência se qualquer outra a poderia substituir. O
que por vezes preferiríamos ser, para podermos tomar todas as nossas decisões livres
de atenções e juízes alheios. O que é profundamente infeliz ser porque ser
humano é ser pertença dos outros, é ser um na vida dos que nos rodeiam.
Jesus mostrou-nos bem que nunca ninguém era só mais um para si. Impressiona-me sempre a forma como ele se detinha perante cada um, mesmo quando os discípulos o queriam fazer seguir em frente, tais guarda-costas, rompendo caminho perante a massa humana que O cercava. A assertividade de cada gesto e cada toque tornava visíveis os mais excluídos, discriminados e ostracizados, restituindo-lhes a dignidade que a sociedade nunca lhes deveria ter tirado. E perante essa visibilidade que lhes dava, da qual qualquer seguidor seu não se conseguia escapar alegando nada ter visto, tornava aquele que era só mais um, nada haver connosco, em alguém com rosto e nome. George Floyd é o rosto e o nome mais mediático atualmente que, na sua concretude, abriu os olhos do mundo para a problemática do racismo contra as pessoas negras. Aylan Kurdi é o rosto e o nome do menino de três anos que foi encontrado morto numa praia turca em 2015 e que, na sua concretude, chamou a atenção do mundo para a crise dos refugiados no mar mediterrâneo. Passam-me também pelo coração tantos rostos e tantos nomes, tantos Gustavos, tantas Adrianas, tantas Zulmiras, tantos Ramiros que, de uma forma muito concreta, me chamaram a atenção para as dificuldades dos idosos negligenciados, das crianças vítimas de violência, dos portadores de deficiência, dos sem-abrigo, dos toxicodependentes, da comunidade cigana, de tantas e tantas realidades que eu precisava de ver (para crer). Para Jesus, cada um é aquele rosto e nome concreto que, diferente de qualquer outro, peculiar como nenhum, é digno de todo o amor; para Jesus, cada um é aquele rosto e nome concreto que, diferente de qualquer outro, peculiar como nenhum, Ele precisa para concretizar a Sua e nossa missão de sermos um. Ninguém é só mais um na multidão. Cada um é uma missão na multidão, que só eu, que só tu podes concretizar. Mesmo que seja somente uma pequena coisa, somente a uma pessoa, somente num instante já valeu a pena; mesmo que te sintas a mais pequena gotinha e o mais pequeno pólen, confia: deles a vida pode brotar.
Percebi então que a equação precisava de ser reformulada: a questão já não passa por estar ou não estar no mundo e tudo ser igual. Já não passar por viver ou não viver. Passa antes por descobrir o que é o mundo e a forma ele se divide connosco e como eu me divido com ele.
Mundo:Eu = ∞ (=)
Mundo:Todos = ∞ (=) Deixemo-nos de tretas. Há lugar para todos!
(e se o mundo forem as pessoas que dele
devem cuidar:)
Eu:Mundo = 0,0000000001298701298701299
< Todos:Mundo=1
Sim, o que posso dar a cada um no
mundo é bastante residual. Mas sei que se me der a 10, se esses 10 se derem a
mais 10 e por aí em diante vou chegar a todos (infelizmente todos estamos familiarizados
com estas contas de multiplicar, seria uma verdadeira pandemia!). Sei que
quantos mais se quiserem dar como eu, mais perto estaremos de ser um.
Ana Emanuel Nunes
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