Pedrogão: a história passou a ser minha...

17 de junho de 2017 – Chegávamos a Portugal da peregrinação das juniores Dominicanas e dos noviços Dominicanos aos lugares de São Domingos em Espanha. Fora uma semana cheia de alegria, de diversão, de conhecimento, de oração, de família dominicana. Paramos na Guarda, onde ficaram a maioria das irmãs e viemos duas para Lisboa com os frades, em virtude de no Domingo termos trabalhos pastorais nas comunidades. Algures na A23 vimos ao longe uma nuvem estranha, diferente… Chovia naquele troço da autoestrada, mas lá ao fundo parecia mais uma nuvem de fumo. Mais um incendio de verão! – pensamos. Assim, acontece quase todos os anos, quando o calor começa a apertar. Chegamos a Benfica, comemos alguma coisa e fomos descansar, para na manhã seguinte apanharmos os autocarros para as nossas comunidades. Não vimos notícias. O cansaço imperava, era preciso repousar para retemperar as forças.

Domingo de manhã, na rodoviária tomei o autocarro para Estremoz. Ouvia um burburinho sobre um incêndio. Tinha havido vitimas. Até que começa o noticiário das 9h: 64 vítimas carbonizadas numa estrada! Acordei! Como era possível?! O que tinha acontecido?!

Começo a chegar ao Alentejo e o calor apertava. Às 10h da manhã estavam já 36º. Depressa chegamos a Estremoz. Tinha a Superiora à minha espera. Começo a perceber então o que se passou em Pedrogão. Mas o tempo voava. Era preciso correr para estar na celebração Eucarística onde o nosso grupo de catequese ia fazer o seu encerramento. À pressa, incluo uma prece na oração dos fiéis pedindo pelas vítimas dos incêndios. Entretanto, em casa começo a ler as noticias, a perceber a real dimensão da tragédia. As imagens daquela estrada com os carros carbonizados entram-me pelos olhos dentro. Começam a sair o nome das vítimas, gente que tentou fugir e foi ao encontro da morte. Mas tudo eram histórias longe de mim. Tocava-nos o coração saber daquelas vítimas, daquelas famílias destruídas. Rezamos por elas, procuramos ajudar como podíamos. A Congregação mobilizou-se para tal. Mas eram histórias que continuavam longe de nós, que com o passar do tempo fomos esquecendo.

Até que chegou o mês de Fevereiro. O Dominismeeting (atividade que prepara a semana de missão - Dominismissio) acontece em Fátima e inclui um tempo de voluntariado. Em virtude do acompanhamento que a Congregação tinha procurado dar a algumas vítimas dos incêndios, a ida a Pedrogão com os jovens tornou-se natural. Tínhamos o contacto de uma das vítimas, que nos fez chegar a mais três famílias. Eu não conhecia ninguém. Apenas a Ir. Flávia tinha feito algumas visitas. Não pensamos muito. Tu ficas aqui. Eu vou para ali. E assim foi. Eu fui com mais alguns jovens para casa de um casal que tinha perdido os dois filhos e a nora no incêndio. Que dizer?! Que fazer?! Como consolar quem ficou sem o seu bem mais precioso?!

Escutar! Escutar! Escutar!

Escutar os desabafos daquela mãe, que tentava arranjar forças para continuar a sorrir.

Escutar aquela mãe que nos contou toda a história com o mais ínfimo dos pormenores. Não escutei revolta, essa já havia passado nos quase 4 meses que nos separavam daquele dia fatídico. Escutei esperança. Escutei a certeza que os filhos são uma estrela presente no seu dia-a-dia. Escutei que a missão continua para cuidar dos netos. E escutei que a sua maior preocupação era o marido, que não dizia uma palavra e que depressa nos deixou naquela cozinha sala. Ele sim, vivia com aquela dor dentro dele e estava a receber acompanhamento psicológico mas não falava nada. E ela sabia que isso lhe fazia mal. O tempo passou e o que era para ser apenas uma hora, foram duas ou três. Era impossível interromper aquela partilha.

E naquele dia, aquela história deixou de estar distante de mim, passou a ser minha. A D. A e o Sr. AJ passaram a ser parte da minha vida. A sua perda era agora também a minha perda. Desde aquele dia, em Fevereiro de 2018, nunca mais olhei para os incêndios de Pedrogão de forma distante. A partir daquele dia, eu passei a sentir aquela dor também no meu peito.

Em Abril, estávamos no início da preparação do Dominismissio, que nesse ano foi no Pedrogão, e percorremos então aqueles caminhos que tinham sido devorados pelo fogo. Em Fevereiro, quando lá passamos havíamos visto tudo negro. Mas agora o verde começava a despontar no meio da paisagem carbonizada. Era a vida que renascia. Era a esperança que surgia. E nós percebemos que tínhamos de ser essa semente de vida para aquelas gentes. Sabíamos que ia ser uma semana diferente de todas as outras, que até ia ter mais atenção dos media, mas que mesmo assim, era importante estarmos ali e sermos rosto de Cristo para aquele povo. Sem grandes palavras, sem grandes ações, sendo mais do que fazendo.

E chegou o final do mês de Agosto, e com ele o tão aguardado Dominismissio. Desinstalar era a palavra de ordem para todos! Irmãs e jovens, todos vivíamos a mesma realidade da desinstalação. Se cada Dominismissio é único e irrepetível, este ia ser de certeza!

Na programação das atividades que fizemos, alem das idas às instituições, havia uma missão muito particular a que, nós irmãs e alguns jovens, eramos chamados. A visita às famílias dos incêndios. No dia marcado e com os contactos feitos, dividimo-nos e rumamos cada uma para uma família, levando connosco alguns jovens, a quem durante o caminho explicamos a situação.

Chegamos a meio da tarde a casa do Sr. AJ e da D. A. O coração batia forte. Não havia esquemas montados. Havia apenas o desejar ser. Não houve discursos ensaiados, nem palavras pensadas. Houve apenas o desejar que Deus nos conduzisse nesta missão. Comigo estava a Raquel que já havia visitado a família em Fevereiro. Acontece a habitual conversa de circunstância e voltamos a escutar aquela história. Para alguns novidade, para outros o recordar. Sentei-me perto da D. A e dei-lhe a mão. Desta vez, o Sr. AJ não saiu da sala. Ficou ali connosco. A Raquel saiu do seu lugar e foi ali sentar-se ao lado dele. Começou a fazer-lhe festinhas na cabeça. A D. A falava. O Sr. AJ permanecia em silêncio, mas estava ali connosco. Passara mais de um ano desde aquele dia fatídico. Procuramos mais escutar do que falar. Vou dando força, como posso. Vejo no rosto da D. A que a sua grande preocupação continua a ser o marido. Estamos ali há quase duas horas. A Raquel não desiste e continua acariciar a cabeça do Sr. AJ e começa uma conversa paralela, perguntando ao Sr. AJ o que tinha comido ao almoço. Esperávamos silêncio. Mas ele falou!!! Respondeu às perguntas da Raquel, que continuaram à volta da comida e como tinha sido a sua vida. E ele foi sempre falando. Não interessava o quê! Interessava era que ele estava a falar. O rosto da D. A mostrava uma surpresa e uma alegria transbordante. O seu marido estava a voltar!

Continuamos ali mais algum tempo. Demos por terminada a visita e voltamos para o carro. Entramos e começamos a viagem. Mas nenhuma de nós era capaz de falar. Estávamos extasiadas com o que tinha acontecido naquela tarde. Percebemos tão bem como Deus se serviu de nós. Fomos seus simples instrumentos naquela tarde. Já estávamos na estrada há pelo menos 10 minutos quando conseguimos começar a falar sobre o que se tinha passado. As lágrimas corriam-nos nos olhos e só dizíamos: ele falou! Ele falou! O Sr. AJ falou, Irmã! – dizia a Raquel. A alegria que nos habitava era tão grande que ainda hoje, não a consigo descrever.

Em Fevereiro de 2019, voltamos a visitar aquela família com os jovens no âmbito de mais um Dominismeeting. O Sr. AJ lá estava. Falava. Sorria. Era uma pessoa completamente diferente da que tínhamos encontrado um ano antes. Lembravam-se de nós e das nossas visitas. Passamos a ser sua família também. Para mim, eles já eram minha! Estavam felizes com a chegada de um bisneto, que havia de nascer em Julho desse ano. A vida aos poucos ia ganhando novo fulgor. Mas o mais importante era o Sr. AJ falar e ter conseguido de alguma forma libertar-se.

Este ano, em Janeiro, os jovens e a Ir. Flávia voltaram lá. Eu, por já estar na Albânia, pedi para o meu abraço ser entregue, manifestei o meu carinho e oração por eles. Em resposta recebi que cada uma das mensagens que envio são lidas muitas vezes. Percebi que não foram apenas eles que ficaram na minha vida, deixei um pouco da minha na deles também!

E hoje, dia em que passam três anos daquele fatídico dia, ao ler um artigo de opinião de um jornalista, acerca do que viveu aqueles dias, as lágrimas correram-me pela face por recordar tudo o que ali se passou. Por perceber que aquela história, agora também já é a minha história!

Ir. Ana Margarida Lucas


Comentários

  1. Impresionou me mas fico feliz com o testemunho das irmas. Que Deus vos continu ajudar a dszer trabalho tao lindo. Obrigada.

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  2. gostei deste testemunho e as pessoas vítimas desses incêndios devem continuar a ser lembradas por todos nós...Deus é grande um grande abraço pela solidariedade aos que sobreviveram

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