4º Domingo: Condenação (A brincar com os anjos)

 4º Domingo da Quaresma, Domingo da Alegria, EVANGELHO Jo 3, 14-21

Segurei firmemente as suas mãos enrugadas nas minhas, forcei o sorriso, ela precisava da minha serenidade!  Apesar de me sentir tão desamparada como ela e sentir um cansaço imenso. Que estará a Samuel a fazer? 

- A correr atrás dos anjos... - Rimos as duas, ela na sua demência fixou um ponto do quarto e respondeu-me: 

- Pois está! E a Teresa está a cantar com eles! Aqui a comoção tocou-me a garganta! E ela sorriu de forma serena e linda! - Ambas, ela na sua demência, eu na minha racionalidade de quem é cuidadora, procuravamos um processo de luto, na ausência do corpo! 

Encontrei-a no corredor, desconsolada e até agitada, agressiva, não adiantava entretê-la com com meias histórias, ela sabia que a nossa Irmã tinha falecido! E queria o corpo, queria velar, tocar, despedir... Embora o tivesse feito no dia anterior. Mas como lhe explicar que em nome da segurança, os caixões ficavam fechados e os velórios eram substituídos por enterros com representantes, em vez da família e dos amigos! A única vez que lhe tentei explicar que havia uma pandemia e que estava tudo fechado e não podíamos sair de casa sem uma justificação, ela respondeu-me que "Tem muita imaginação!" Então sentamo-nos as duas no quarto e fomos descascando memórias da Ir. Samuel, como quem descasca rebuçados! Até chegarmos à conclusão que a Samuel estaria a brincar com os anjos! Deixei-a em paz, nesse semi-consolo! No consolo de quem pode perder o corpo porque sabe que o Senhor nos levanta, que  «Deus enviou o seu Filho e Nele somos salvos! 

À tarde chamaram-me, a Ir. estava numa excitação, que a Samuel a vinha buscar... Rimos e brincamos... Acabou por adormecer, fiquei preocupada, como ajudá-la a a fazer o luto, se não a podia levar ao funeral? Na fim da manhã do dia seguinte, encontrei-a, está cansada? Sim, mas gostei muito! Ai gostou? De quê? Do funeral da Samuel, não foi? Tão bonito! Não conheci os padres todos... Essa Irmã fez tanto bem! 

Muita coisa li e escreveram muito bem sobre a vida centenária da Ir. Maria Samuel Vieira. Confesso que nesses dias tive vontade de escrever, mas as azafamas e um encontro de jovens ontem levou-me a adiar... Também me questionei se a morte de uma pessoa de 100 anos e 7 meses pode dizer algo aos jovens? Mas as mensagens dos jovens também me responderam, os jovens sentirão a falta  da velhinha que sempre os acolheu e amou... Também é verdade que muitos jovens foram apanhados na pandemia, com a verdade que nem tudo vai terminar bem... Porque um avô, um amigo, alguém faleceu nestes tempos de distância... Porque os jovens e muitos adultos geralmente são afastados da morte, da velhice, de tudo o que possa manchar o arco-iris colorido.

Mas hoje refletir neste Domingo da Alegria traz-me a esperança e a força da Ir. Samuel!!! Nestes 10 anos de Aveiro aprendi muito! Aprendi com os jovens, a delegar, a perguntar, a confiar neles! Aprendi com várias Irmãs o sentido da vida, o mesmo sentido que a minha mãe me ensinou à 33 anos!

Sempre achei que a Ir. Samuel que tanto gostava de viver se ía reconciliar com a morte antes de a abraçar. E realmente Deus concedeu-me o dom de a acompanhar, de ver o receio, o medo dar espaço à paz, à serenidade, à mão que segurava firmemente a minha, porque tudo fica mais fácil acompanhado! Ao corpo frazino, cansado e doente, mas depois de se recompor procura os meus olhos e diz, já estou melhor... Vai descansar... 

Minha querida "velhinha", a que tu me respondias, pois sou! Realmente tu és a imagem da entrega e da fé neste Deus. De várias pessoas ouvi a tua capacidade de acolher, e eu sei isso tão bem! Cada vez que saia para uma atividade pastoral, tu dizias, a Irmã vai, mas eu também vou com a Irmã... Vai em meu nome e eu rezo por si! Acho que era esta capacidade de acolhimento que os jovens gostavam... Tu brincavas com o verniz azul ou preto das unhas, mas não era a condenação que afasta, era o teu sorriso bricalhão que aproximava! Era um olhar para lá de qualquer verniz...  

Poucas horas antes de partires cantámos as duas o "Avé de Fátima" e de ti fico com o exemplo de  que"quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus." 

Querida Ir. Samuel que como tu saibamos retirar da nossa vida a forma condenatória com que muitas vezes olhamos o outro, que saibamos ter essa ternura... Que nesta semana eu espalhe sorrisos... Pois quem acredita sabe que em Cristo é salvo, é levantado... é amado!

Ir. Flávia Lourenço, op 


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