Domingo de Ramos: Traição


"Estamos no pórtico da Semana Santa. Milhões de crentes têm diante dos olhos o drama do justo que morreu na cruz. Milhões de crentes de outras religiões têm diante dos olhos o Calvário que atravessaram os povos subjugados para chegarem à liberdade.” [1]  Milhões temos na consciência o cemitério, o túmulo que é o mar mediterrâneo para tantos refugiados. Milhões temos a consciência da agonia de profissionais de saúde e familiares, quando a morte vence a batalha, quando mais gente aparece contaminada; quando os seus entes queridos não têm lugar para receber tratamento, ou morrem nem canto do Hospital. “Jesus sofreu a Cruz  por sua atitude e postura de homem livre frente(...) à ignorância com que o levaram à morte (não sabiem o que faziam). Para testemunhar da Vida sem fim. Para contrariar a linguagem do mundo, hipócrita, niilista.

Estamos a seguir os passos daquele que a  multidão acolhe hoje – Jesus como triunfador – e para quem, quatro dias depois pede a crucifixão. É o mimetismo que reúne todos os que participam, enquanto atores ou apenas como espetadores. É o mimetismo que faz de Jesus aquilo em que ele se vai tornar, um bode espiatório. A solução extrema de Jesus é tão extrema que a vítima tem a impressão de ser rejeitada pelo próprio Deus: «Meu Deus, porque me abandonaste?»

Aquilo que ressalta desta festa que ela é já a festa da Páscoa, mas vista a negativo. Afirmamos a vitória e, ao mesmo tempo, sabemos que ela é invisível, silenciosa, escondida na hora em que Jesus entra na Paixão e nós no Calvário das nossas vidas. A festa hoje é a Ressurreição mas com uma multidão que aclama um Homem humilhado, aparentemente submetido ao poder da morte e aos poderes deste mundo. «Salvé» grita a multidão, saudando algo de muito antigo que irrompe no presente: David, esse rei segundo «o coração de Deus», como diz a Escritura. Estranho rei que vai morrer: o jumento não vem arriado com vestimentas reais mas com as roupas dos que o seguem. Hoje, a festa é essa mistura inacreditável do silêncio, da humildade de Deus que vela ainda pelo poder que subverterá o mundo e a sua divisão do visível e do invisível e nos abrirá as portas do Aberto. Jesus vai interpretar essa receção como a unção de Betânia, como se vê pela citação da Escritura. Que realeza é esta montada num jumento? Sentando-se num jumento, Jesus faz falar as Escrituras. As aclamações, as palmas tomam o lugar do perfume.

Fazer do fracasso um êxito, converter a Cruz em esperança, foi o que fizeram os primeiros cristãos, isto é, aqueles que reconheceram em Cristo o seu estandarte, o seu caminho, a sua Cruz.

Que a nossa cruz seja a de Cristo, cujo jugo é suave e a carga leve, que retiremos da nossa vida a traição a Deus, aos outros, mas sobretudo a nós próprios! E como as feridas precisam de ajuda para cicratizar, aplica sobre cada uma, o remédio que Cristo usou na cruz, “Pai perdoa-lhes, que não sabem o que fazem”. Aceitas o desafio de olhares para ti, para os que te rodeiam, para tudo e perdoar?

Porque a cruz não é o destino, mas só a ponte, (…)Da cruz avista-se a manhã de Pàscoa. Que Deus nos encaminhe para lá, cada um com a sua cruz e a sua palma: para lá testemunharemos da vitória sobre a morte e do silêncio dos inocentes.[2]
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[1] Mourão, José Augusto, op; Quem vigia o vento não semeia;
[2] Ibidem

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