Da terra ao Convento

Ir.  Rosália com o laço na cabeça

Eu Rosália Moreira Marques Lincho, nasci às 7 horas do dia 11 de agosto de 1938, uma 5ª feira, quando nessa altura a Igreja Católica fazia a memória de Nossa Senhora da boa morte. e era a Festa da Padroeira, no meu lugar, no 2º domingo de Agosto, com a invocação de Nossa Senhora da Piedade e, ainda hoje se festeja nessa data.
Cresci muito feliz e regateira que precisava da correção frequente. (...) Dia 1 de Janeiro de 1939 fui adotada, como filha de Deus, pelo Batismo, com grande pena minha de ficar tanto tempo á espera desta graça.

Chegou a altura de ir para a escola, lá andei aos trambolhões. Meu pai tinha tirado da escola a minha irmã anterior por a professora lhe bater, sem pés nem cabeça, quando não respondia à aprendizagem desejada.  Então a Rosália foi um ano  para o colégio que havia na terra. No ano seguinte estudei  numa senhora particular onde, no decurso do ano apareceu um vaso de flores partido e depois dos outros 3 colegas serem entrevistados e dizerem que não foram eles, só faltava eu. Aí fui forçada a assumir o que não fiz e foi-me pesada esta culpa. Também me ajudou a ser mais tolerante e a não julgar os outros com leviandade.
Agora, sim, 3º ano de escolaridade, meus pais puseram-me na casa de minha madrinha para poder frequentar a escola, embora noutra área. Ficava lá de 2ª a 6ªfeira, em casa de minha madrinha, devia ter uns 8 ou 9 anos, bem doloroso para mim nesta idade sair do ninho familiar. Só ansiava o sábado para correr para casa. No fim do ano, não voltei à escola, porque não me agradava estar longe da família. 
Conclusão: andei de Herodes para Pilatos para estudar e acabei por não passar da 2ª classe. Paciência. Gostava tanto de estudar e não era das mais burras! Depois continuei já jovem. Entretanto, sonhos tinha eu, até de ser escritora, pois até me diziam que fazia versos.
Na minha adolescência tinha amigas, andava na pré-jac. Aí, me ia realizando. Ia chamar as outras colegas para as reuniões. Isto era o despertar para o apostolado que me esperava. Gostava de crianças. Tinha minhas diversões. À semana era o trabalho do campo. Mergulhada na natureza satisfazia-me; meu pai era agricultor, por conta própria. Todos os filhos aí trabalhavam. Só a rapariga mais velha era costureira. Os rapazes, esses depois da tropa emigravam se tivessem vocação para isso. Ao domingo íamos á Missa, às festas se as havia. Havia bailes, mas nem pensar que meus pais autorizassem. Às vezes fazia uns passinhos, com um dos meus irmãos mais velhos, à socapa do pai. 
Diziam que eu era engraçada, reguila, diriam hoje. Como meu pai me tinha a corda curta eu não arriscava a grandes travessuras. Desde que me recordo tinha alguns defeitos bem acentuados, tais como: vaidade, gostava de estrear roupas bonitas, vistosas, tipo cores de Primavera e Outono, não gosto de roupas escuras. Com as tranças do meu cabelo imitava a permanente e cabelo à moda de lisboa. Ele era tão moldável que me dava prazer trabalhá-lo a meu gosto. O problema é que quando cheguei ao postulantado, tive que usar touca escura; ninguém me deu essa ordem, mas eu pequei numa tesoura, cortei a minha bela trança e meti-a no fogo. 

O que mais me doía, era quando eu entrava dentro de mim própria, e me assaltava a ideia, da eternidade. Ganhar ou perder eternamente, era ideia que não me entrava na cabeça. Tinha feito a catequese para a 1ª Comunhão aos 9 anos, que foi o dia mais belo da minha infância. Nesse dia também fui crismada. Era assim na altura. Quando me assaltava esta ideia via-me atrapalhada; agarrei-me depois a fazer atos de fé e pensar que no céu estava lá eternamente muita gente incluindo Nossa Senhora, que tinha vindo a Fátima, isso consolava-me. Depois a fé foi crescendo e isso ajudou a ter maior certeza e menos angústias desse tipo.
Meus pais eram agricultores. Era uma casa abastada. Tinha vários pinhais que davam agulhas e lenha para cozinhar e aquecer o inverno. Cultivavam terras, tinham vinhas para ter vinhos para vender. E, claro ter pão para numerosa família e ajudar os mais necessitados como fazia a minha mãe.
Agora de freiras? Na minha terra havia umas Irmãs, mas sua visibilidade era só na igreja ou na creche da misericórdia, onde nunca eu ia. Uma vez por ano as Irmãs Franciscanas passavam por minha casa a vender livros e diziam à minha mãe se lhes dava uma filha para ser freira. Eu era adolescente. "Nem pensar" dizia eu, e questionava: andam tão tapadas, por onde é que elas respiram? Aka!!! (...) Meu sonho era arranjar um jovem que gostasse de mim, para isso desdobrava-me em alguns esforços. Sonhava casar, ter filhos. Gostava tanto de crianças!… Ser freira não estava nos meus planos.  
Tinha acabado de fazer os meus deliciosos 19 anos. Nesse ano fui nomeada mais 3 colegas da terra para mordomas da festa da Padroeira do Lugar. Esta tarefa consistia em cuidar dos arranjos semanais da capela, pois aos domingos havia Missa e no ano seguinte organizar a festa com ajuda dos mordomos. Depois passar a pasta às mordomas do ano seguinte. Por essa altura veio um casal de parentes nossos do Brasil, comprou um carro e resolveram ir a Fátima o que aconteceria em meados de setembro. Como tinham dois lugares livres no carro convidaram minha irmã mais velha e uma outra prima. Entretanto em Fátima, haveria nos padres dominicanos, um retiro organizado para rosaristas. Comecei a sentir um grande desejo também de ir, mas… lugar no carro? não tinha, dinheiro para a despesa e o regresso, também não, porque a boleia era só para a ida. Nem sabia se haveria lugar no tal retiro. Nem tinha licença de meus pais, Era um monte de obstáculos. Só tinha de meu o desejo de ir.
Entretanto desistiu a tal prima, aí pus-me logo em campo: Escrevi para os Dominicanos. Alguém que me devia dinheiro de trabalhos de bordados que eu tinha feito pagou-me. Minha mãe autorizou. Só faltava a resposta dos Dominicanos, que eu resolvi da seguinte forma, caso a resposta à carta não chegasse a tempo: Eu iria e se não fosse possível fazer o retiro voltaria na mesma boleia. Mas a carta sempre chegou na véspera à hora certa. 
La fomos pela Figueira da Foz. Aí assistimos a uma tourada, a única que assisti na minha vida. E lá chegámos a Fátima pela tardinha. Minha irmã Clara e eu fomos ao convento dos Dominicanos, veio-nos atender o Frei António do Rosário,op. Minha irmã, entregou-lhe o dinheiro das assinaturas do Rosário de Maria e lá tratou de combinar onde e como nos alojarmos para o retiro que iria começar à noite na Casa de Nossa Senhora das Dores.
Quase já no final do assunto tratado, o Frei António olha para nós as duas e pergunta: - “As meninas nunca pensaram em ser religiosas”? Não, foi a resposta da minha irmã, eu fiquei calada. Nisto toca o sino para os frades irem rezar vésperas. O Frei diz: vocês já viram os frades rezar o Oficio? Resposta, só minha irmã dava, não, e ele continuou; então, se não se importam entravam na capela, eu ia rezar e depois continuamos a conversa. Tudo bem lá fomos nós. 
Quando eu entro na capela, ainda hoje é a mesma de há 63 anos, e vejo perto de 40 adultos e muitos jovens todos de branco, caí num mar de lágrimas sem querer, escondendo a cabeça envergonhada por tal atitude. Acabou o Oficio voltamos á portaria onde nos encontramos de novo com o frei. Perguntou se gostámos.
E a cena passou, fomos para o Retiro. As conferências começaram, mais oração e, como se faz em todos os retiros lá vou eu confessar-me, no dia seguinte, ao frei António. Depois da confissão disse: “ Eu quero ser religiosa”. Muito bem, responde o frei. Já escolheu a Congregação? Não. Sabia lá eu o que era preciso. Desde quando pensa nisso? Desde ontem, respondi. Acho que ele deve ter ficado atónito com minhas respostas, pois eu acrescentei: Mas eu quero ir já. Ele lá me acalmou dizendo os passos que devia dar antes de entrar no convento. Lá fui entendendo e combinando com ele para me ir ajudando através de correspondência, la voltei para casa, sem contudo revelar a ninguém o tsunami em que eu me tinha embrulhado, era meados de setembro de 1957
Só me lembrava que quando vi aqueles frades todos a rezar, tão jovens pensei: “Deve ser uma coisa muito grande a vocação para deixarem tudo e se enterrarem aqui “. Agora sei que é mesmo grande e que Jesus não me enganou. (...)
Lá fomos para casa guardando eu ciosamente meu segredo, pois eu própria tinha medo de estar enganada e fracassar. Nunca consegui aceitar bem um fracasso depois de ter tomado uma decisão a sério. Custe o que custar…
Agora esperava-me o aperto do coração; comunicar a meus pais a decisão antes que mais ninguém soubesse. Foi difícil apanha-los a jeito e eu sozinha com os dois. Já estávamos a entrar no inverno e eu andava em pulgas para lhes comunicar, até que chegou o dia. Depois do jantar rezamos o terço em família e cada qual foi para a deita. Eu aguardava a hora e a coragem para falar. A hora já ia adiantada o meu pai diz para minha mãe: Ana, vamos deitar. Tenho um sobressalto: ou agora ou nunca. Lá me saíram as palavras da boca: Tenho uma coisa a dizer:
Eu quero ser religiosa! Era tão inesperada a saída que não houve resposta. E assim naquele suspense fomos dormir.
Às minhas três irmãs, não disse logo, mas o meu comportamento começou a intrigá-las. Com efeito o chamamento do Senhor operou em mim uma mudança interior radical. Eu sentia que (...)tinha que estar mais atenta aos irmãos e escolher o lugar e as coisas menos preferidas pelos outros. Cultivei mais a oração, frequentar mais os Sacramentos, assim como a orientação de Sacerdotes a quem me confessava. Continuei a escrever-me com o Frei António.
Mais tarde, muito delicadamente a mãe me perguntou o que eu precisava levar.
Entretanto Frei António, como bom Dominicano diz-me que devia escolher Congregação. Para mim que não conhecia nenhuma para este efeito, qualquer uma servia. Mas ele disse que havia Congregações dominicanas as do Rosário e as de Santa Catarina. Então, escolhi as de Santa Catarina por serem portuguesas. (...)
Frei António pôs-me em contato com as dominicanas, com quem comecei a corresponder-me. E lá vieram as perguntas porque eu não tinha nenhuma recomendação de nenhum padre, nem outra pessoa da sua confiança. Como eu não tinha a 3ª classe aproveitei os meses próximos para a fazer com uma parente que aliás já tinha sido a minha professora na 2ª classe. Entretanto a resposta das Irmãs atrasava para o meu feito decidido. Eu estacionei na pressa e dizia a mim própria:
Se não me respondem, paciência já não é culpa minha, assim não vou. E bem doloroso estava a ser pois verti muitas lágrimas por ter que deixar o seio familiar. A ninguém fora de casa eu comunicara a minha decisão, até porque não tinha certezas de ser capaz de seguir a vida consagrada. E na minha freguesia nunca alguém tinha ido para o convento, além de que eu era mais atiçada para as festas e bailes que as minhas irmãs.
Até que um dia lá vem uma carta do Ramalhão da Madre Teresinha perguntando como estava e falando no assunto. Lembro-me que disse a mim própria: agora não posso fugir ao Senhor que me quer lá. E comecei a pensar. Já que é para me dar toda seja; irei no dia que fizer 20 anos, é uma boa data para os celebrar. Ele que tanto me amava bem merecia esta data para a entrega total.
Nesse ano eu e mais 3 colegas eramos mordomas da Festa de Nossa Senhora da Piedade, era o dia em que eu queria partir, o dia dos meus anos. Minha mãe pediu-me, não vás nesse dia, vai 2ª feira. Para fazer a última vontade de minha querida mãe, concordei. Na véspera desse dia, e no dia da festa com as três colegas tudo preparámos. Fui a casa dos meus padrinhos na tarde desse dia e despedi-me dizendo que ir partir.
As malas estavam preparadas. Dia 12, segunda-feira no comboio das 11h acompanhada por um dos meus irmãos e a mãe e fomos direitas a Fátima, pois queria passar pelos Dominicanos para me encontrar com frei António. Foi bom porque passei junto de Nossa Senhora e iria entrar no Ramalhão, no Postulantado num dia 13. A minha vida estava tão marcada pela presença de Maria, que ela fez-me mais esta fineza.
Na minha cabeça aquilo eram umas despedidas «para sempre». Não como agora…  O mais engraçado é que nessa tarde do dia 12, no dia que saí de casa, devia ir com as tais colegas da festa á frente de uma banda musical entregar o ramo de flores às novas mordomas, do ano seguinte, era oitava da festa. Quando as minhas colegas chegam a minha casa para eu as acompanhar e chamam pela Rosália, esta tinha-se pirado para o convento e não lhes dissera nada na véspera. Disse-me depois uma delas, anos mais tarde, que foi um choque tal, em linguagem de hoje diríamos: foi um terremoto inesperado.
Cheguei ao Ramalhão dia 13 de Agosto. Estavam a celebrar o Capítulo Geral, por esse motivo fui recebida, mas fiquei uns dias sem ninguém me ligar patavina. Ficava num canto da capela e nas refeições iam-me chamar para comer. Finalmente lá acabou o tal Capítulo. Fui introduzida no grupo das outras postulantes. Irmãs, naquela altura em que entrei, eram mais de 100 irmãs. Postulantes mais de 15, depois o grupo das noviças, mais o das professa, etc. Mas na altura havia  dois grupos as Irmãs de coro e as irmãs Conversas, que viriam a ser unidas em uma só, depois do Vaticano II.
Fiz 7 meses de postulante e tomei hábito dia 1 de abril do ano seguinte. Fiz depois um ano e um mês de noviciado e professei dia 29 de abril do ano seguinte, 1962. 
Ir. Rosália Lincho, op 



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