ENTRE TANTOS - Sou também, Etty, uma ajoelhadora em treino




Comecei esta quarentena com uma montanha de livros por ler. A verdade é que os vou comprando, ou nas oportunidades imperdíveis da feira da ladra, no OLX e sim, volta e meia, quando não encontro usados, compro novos. Quando era pequenina, era utilizadora assídua da biblioteca mas, nos tempos que correm, torna-se muito, muito difícil, infelizmente, cumprir com as datas de devolução. 
Já ouvira falar do Diário de Etty Hillesum. Pouco mais sabia que era uma jovem adulta judia que vivera em pleno Holocausto e que, no meio daquele terror, conseguira morrer firme na fé em Deus e na beleza que era a vida. Fascinou-me logo: se eu tinha adorado Anne Frank, quando era adolescente, tinha tudo para também adorar a Etty na flor da sua juventude como agora me encontro também. Comprei o livro no verão e acabei por o começar a ler finalmente na semana santa. Não nego que lê-lo apenas recentemente me fez todo o sentido por isso ainda bem que esperei. Há razões que a razão desconhece, mas há sinais que não conseguem passar despercebidos, coincidências que não o são.
Dei por mim, de facto, a identificar-me muito com a sua urgência de fazer, de deixar uma marca, uma forma de se perpetuar - ela com a escrita, eu sem essa pretensão, que estes textos são humildes; eu antes na relação com os meus alunos, no que podemos partilhar e nos momentos de descoberta pessoal e de crescimento que posso acompanhar. Sobretudo, identifiquei-me com ela na busca de um sentido de vida menos egoísta, mas que não despreza os nossos sentimentos, por mais insignificantes e fúteis que possam parecer, um sentido de vida mais amplo, esperançoso, onde Deus está e onde a Sua beleza sempre se sobrepõe porque faz parte deste horizonte maior.
A certa altura, diz a Etty: "Existe Deus. A menina que não se consegue ajoelhar, mas aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de coco numa casa de banho suja. Tais coisas costumam ser mais íntimas do que o sexo. A história da menina que aprendeu a se ajoelhar é algo que eu adoraria escrever da maneira mais completa possível." Fiquei retida nesta frase, como já tinha ficado em muitas outras antes desta. Fiquei rendida porque não pude deixar de imaginar a ser eu essa menina que aprende a ajoelhar-se e a descobrir a intimidade com o seu Pai mesmo no meio da bagunça. E sim, também quero escrever essa história, da forma mais completa, intensa e plena possível.
Lembro-me bem que um dos momentos mais marcantes que tive, a nível de fé, foi justamente quando me pediram para fazer a minha história de amor com Deus, evocando as memórias mais antigas que tinha e todos os pontos chave da mesma. Julguei que seria uma tarefa bem difícil de concretizar mas, com bastante naturalidade, fui preenchendo linha a linha o meu caderno. Preenchi 4 páginas, eu que inicialmente pensara que numa página despacharia o assunto. Hoje fui buscar esse caderno, relembrar esses episódios e apercebo-me que são episódios de pura felicidade, de êxtase, de realização, em que Deus se manifestara em todo o seu esplendor e me tocara com a sua alegria.
Hoje sei que essa história de amor não está completa: faltam os momentos de tristeza, de coisas que considerava quase certas e que perdi. Faltam os momentos de dor em que tudo foge às nossas expectativas e nos defraudam, sem que tenhamos mão. Faltam os momentos de dúvida, em que colocamos em questão quem somos e o que queremos, em que parece não haver rumo. Faltam os momentos de deserto, em que não O sentimos intensamente, em que não conseguimos viver na gratidão como gostaríamos. Mas sentimos cá dentro essa necessidade de O procurar, de O querer viver... de tentarmos ser-Lhe fiéis apesar de tudo. Porque já vivemos esses momentos felizes e sabemos que Ele preenche a nossa vida. Porque sabemos que podemos confiar Nele porque nos ajuda, no meio daquilo que vemos como tribulações, a encontrar o sentido em tudo.
Certo dia, um amigo, perguntou-me antes de ir dormir: "O que tomas para ser feliz?" Estava demasiado mole já para fazer um esforço sequer a tentar encontrar uma resposta pomposa para lhe dar e pedi-lhe que fosse direto ao assunto. Respondeu-me: "Decisões, boa noite." Hoje recordo-me desse episódio porque me apercebi disso: que nenhuma decisão tomada, nenhum momento que dela advenha, não é só boa ou não é só má. Mesmo na melhor decisão da nossa vida, para viver o momento feliz, houve algo que tivemos que abdicar, algo que poderia vir também a tornar-se a melhor decisão da nossa vida, o momento mais feliz. Mesmo da pior decisão da nossa vida, aquela que absurda e ridiculamente nos levou aos piores momentos, podemos extrair algo de bom que nos ajude a crescer para a felicidade. Contudo, a vida também é aquilo que nos acontece e que não conseguimos de todo controlar. Resta-nos continuar a escolher decidir enfrentá-la com esperança e audácia, procurando aceitar o que é mau e avançando agarrando-nos ao que é bom.
Penso que foi isto que a Etty foi conseguindo fazer: viver a sua vida apontada ao bem. Acolher com humildade a vida tal como ela é, ajoelhando-se perante o mistério que é Deus. Diz-nos ela: "No passado, eu também costumava ser uma daquelas que ocasionalmente exclamavam "eu sou realmente religiosa, sabes?". Ou algo assim. Mas agora às vezes caio de joelhos ao lado da cama, mesmo numa noite fria de inverno. E ouço-me a mim mesma, deixo-me levar, não por nada do lado de fora, mas pelo que brota do meu íntimo. Ainda não é nada mais do que um começo, eu sei. Mas não é mais um começo instável, já criou raízes."
Sou também, Etty, uma "ajoelhadora" em treino, uma menina que quer viver a sua vida apontada ao Bem, procurando-o dentro de si onde Ele habita. Sou também, Etty, a menina que quer escrever esta história de aprender a ajoelhar-se mas que sabe que está só bem no começo, que as verdadeiras dificuldades ainda estão por vir apesar de parecer que já passei por tanto. Sou também, Etty, a menina que sabe que, no final de contas, é uma tonta por pensar que a pode contar com palavras coloridas e amplas, sabendo perfeitamente que nenhuma palavra será capaz de conter tudo o que Ele (nos) é. (o Seu mundo e o Seu céu são tão vastos...)
A vida estende-se à minha frente e espero em Ti: que o meu coração sinta contigo, que os meus olhos vejam contigo, que os meus ouvidos escutem contigo, que as minhas mãos façam contigo, que a minha boca diga contigo enquanto continuo a caminhar eternamente a Teu lado.

Ana Emanuel Nunes

PS: Deixei de ler o diário. Neste primeiro terço que li, já há tanto para absorver, para me deter a pensar... Tenho a certeza que mais lá para a frente me fará todo o sentido pegar nele de novo e que vou ficar feliz por ter esperado. Há razões que a razão desconhece e vão continuar a haver sinais que não conseguem passar despercebidos, coincidências que não o serão.


Comentários

  1. Obrigada pela bela partilha, Ana! É verdade, todos somos ajoelhadores em treino! Sempre e a cada dia mais!

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  2. Muito obrigada pela partilha fechadas em casa e bom termos estas lindas mensagens para ocuparmos o tempo. Obrigada .

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