ENTRE TANTOS - Tão família

A minha família vive em Coimbra, longe da casa dos meus avós, muito longe da casa dos meus tios e primos. Sempre lamentei muito, quando era criança, não poder ir brincar com os meus primos às escondidas quando me apetecia, o que fazia com que aproveitasse essas ocasiões à séria quando nos reuníamos pelo Natal, pela Páscoa e pelos nossos aniversários em família alargada. Também sentia alguma inveja dos meus amigos, quando os seus avós iam diariamente buscá-los à escola cheios de tempo, carinho e guloseimas (às vezes lá calhava os meus avós estarem por Coimbra por causa de alguma consulta e era maravilhoso quando me davam esse gosto e os via dentro do carro à minha espera!). Esta distância física significava também que, nos fins de semana, quando os meus pais tinham algumas atividades, muitas ligadas à Igreja, não houvesse propriamente ninguém à mão que pudesse tomar conta de mim e dos meus irmãos. Então lá íamos nós com eles para todo o lado, na maioria dos casos sem que fosse aborrecimento algum, tirando quando tinha de fazer o sacrifício de os acompanhar às lojas de materiais de construção (esse era o maior tédio). Mas, por exemplo, fins de semana de cursos de preparação para o matrimónio, onde os meus pais faziam parte como casal da equipa dinamizadora, eram sinónimo de rebuçados à discrição e de brincadeira sem fim com os filhos dos outros casais da equipa pelos corredores e varandas do Justiça e Paz. Atividades de jovens, aonde os meus pais eram convidados a dar formação ou testemunho, significavam também momentos diferentes e, sobretudo, seja honesta, muito mimo que nos davam: a nós as crianças que, sendo só crianças, já são fofura suficiente para serem o centro das atenções, para que os jovens façam questão de nos ter sempre ao pé de si e onde só voltamos a querer saber dos nossos pais quando, infelizmente, chega a hora de regressar a casa (sim, agora o papel inverteu-se e sou uma dessas jovens que acha as crianças irresistíveis!).



    


Bem, tudo isto para dizer que houve uma dessas atividades que me marcou profundamente e que me lembro dela com tanta clareza que assusta. Foi uma atividade com jovens escuteiros, todos sentados no chão em roda, cada qual com uma folha e uma caneta à frente, desafiados a desenharem a sua família. Eu e os meus irmãos, claro, também fomos incluídos e lembro-me de pensar “A sério? Este desafio, até para mim que sou pirralha, é fácil.” Mãos à obra, lá nos desenhei aos 5, todos lindos. Chegou a altura de partilhar o meu desenho, mostrei-o toda orgulhosa e foram só elogios para a menina bem-comportada e encantadora que desenhara com tanto cuidado os seus mais queridos. E eis que chega a vez de uma rapariga dos seus vinte e poucos que apresentou algo completamente diferente e me fez pensar “Bolas, esta não esperava mas faz todo o sentido”. Se fez sentido aos 7-8 anos, imaginem: eu agora, também rapariga dos meus vinte e poucos, compreendo na perfeição o que ela quis transmitir.

Ela tinha dividido a folha em 4 partes, porque ela sentia-se parte de 4 famílias: a de sangue, a dos seus amigos, a dos seus colegas da universidade e do trabalho e a da Igreja, com uma afinidade muito especial com os seus irmãos escutistas. Vendo toda a questão pessoalmente, sinto-me segura para arriscar dizer que talvez na verdade não sejam 4 famílias, mas sim pessoas de uma única família que moram em casas diferentes. Porque, para mim, família são todas as pessoas com quem me sinto realmente em casa, sejam de sangue, amigos, colegas da universidade e do trabalho ou da Igreja. São todas as pessoas com quem posso ser verdadeiramente eu mesma, sem filtros, porque me sinto amada por elas apesar de elas conhecerem também o pior de mim. São todas as pessoas que me acompanham no dia-a-dia e são todas aquelas que, nem que seja uma vez por ano, se faz por reencontrar para voltar de coração cheio, sabendo que estão lá sempre a dar força para o caminho porque há ligações que nem o tempo é capaz de apagar. E sim, não são famílias diferentes, fazem parte de uma única família que é a minha. (família da minha família minha família é!) Essa família que me define, por quem abdico, a quem tento mostrar, apesar de toda a correria, que comigo podem contar, que a confiança e a fidelidade que fazem de nós um nós serão sempre o mais importante na minha vida. São um comigo, porque o amor que tenho por eles e que eles têm por mim os une, mesmo sem saberem.

Para mim, é essa a beleza do Pentecostes que celebramos este fim-de-semana: o sabermo-nos dignos de receber o Espírito que nos torna família porque o Amor incondicional e infinito que o Pai, pelo Filho, nos tem e que procuramos tornar recíproco cada vez mais no nosso viver tem de verdadeiramente nos unir num sentir comum. Pelo Espírito, tornamo-nos construtores do Reino, essa casa construída com os dons e com as diferenças de cada um, com as portas sempre abertas para todos acolher. Pelo Espírito que nos torna família, falamos finalmente a mesma língua, sim, a língua do Amor, onde não há barreiras que nos impeçam de nos partilharmos transparente, sincera e humildemente.

 

A única chave que tive até à universidade era a do meu cacifo na escola e bastava-me bem, pois, por mais que me esforçasse, acabava sempre por a perder de lés a lés e obrigar os funcionários a rebentar com cadeados ou a destruir fechaduras. Nunca tive necessidade de ter uma chave de casa pois chegava sempre acompanhada pelos meus pais ou pelo meu irmão mais velho que me iam buscar a todo o lado (aulas, ensaios, concertos, reuniões, jantares) e me abriam a porta. Se vinha de boleia com alguém e já era tarde, utilizávamos a velha técnica da chave escondida ou debaixo do tapete ou no vaso das orquídeas.  Assustava-me a perspetiva de um dia ter uma casa só para mim porque teria de cuidar dessa chave. Aos 18 anos, com a minha mudança para Aveiro para estudar na universidade, chegou o tão temido momento e para o assinalar com a solenidade devida, decidida a fazer dele um turning point no que toca à responsabilidade, achei-me merecedora de comprar um porta-chaves bonito que acabei por encontrar na Ale-hop.

O porta-chaves ideal, de metal resistente, mostrava uma casa com cores alegres, com fumo em forma de pequenos corações a sair da chaminé e uma frase gravada no verso: “casa é onde o teu coração está.” Família é mesmo isso, são as pessoas que habitam a casa onde o nosso coração está, onde vamos deixando uma parte de nós nos sítios e nas situações que nos arrebataram, que nos fizeram crescer e nos tornaram felizes, de onde trazemos saudades e onde também as deixamos. Um coração que se vai dividindo porque se aceita entregar e aí permanece e que, em vez de diminuir, nos aumenta. Tenho o meu coração em múltiplas casas, tenho a minha família dispersa pelo mundo pois quis ir além das quatro paredes que me podiam limitar em mim mesma e, por muito que as saudades possam apertar, por muito que me custe não ser possível dar aquele abraço apertado, corpo a corpo, tudo vale a pena. Mas, se casa é onde está o nosso coração, cuidar daqueles que partilham connosco cada aqui e agora, como autêntica família e com a mesma dedicação, é um desafio e pêras que, de novo, só nos vai aumentar.

 

Houve vezes que puxei a porta ao sair de casa com as chaves lá dentro, outras que deixei as chaves na fechadura durante toda a noite e só dava conta na manhã seguinte quando andava doida, já atrasada para as aulas, à procura delas (benditas roomies!). Com o tempo, esses episódios começaram a rarear e a esse pequeno molhinho de chaves, da porta do prédio e da porta do apartamento, foram sendo acrescentadas as chaves do cadeado da bicicleta, da caixa do correio, a das escolas onde comecei pela primeira vez a dar aulas de música, as chaves do carro que acabei por conseguir comprar e sim, finalmente, as chaves da casa em Coimbra aonde regressei (continua a não ter praticamente uso, pois tenho sempre alguém que me espera ao final do dia e não há nada que pague isso!). Fui crescendo e foram-me sendo confiadas cada vez mais chaves, mais pessoas que deixam que eu lhes entre porta a dentro, que faça parte dos seus planos e exigem que não haja cerimónia entre nós. Ser digna dessas chaves é autêntico privilégio pela qual sou diariamente grata. A todos vós, família a quem confiei a minha chave, que nunca se desvaneça a certeza de que são eternamente bem-vindos e que sou vossa.

Entretanto, o meu porta-chaves da casa partiu-se. Desta vez, não precisei de ir comprar outro igualmente inspirador porque houve alguém tão família que se encarregou de o fazer, de surpresa, para mim. Agora, junto às minhas chaves, carrego uma baleia que diz que eu mereço um oceano inteiro. Não sei se mereço um oceano, mas sei que é ele verdadeiramente que une a minha família desde o Panamá a Timor-Leste. O meu maior sonho ainda é a invenção do teletransporte, para estar com cada um num piscar de olhos, num pulsar do coração. E se a baleia é o maior animal do mundo e, por isso, presumo que o seu coração também seja dos maiores, que o Espírito que habita em mim permita que o meu coração pequenino cresça e cresça e cresça e se torne o maior possível.

Ana Emanuel Nunes

   
   



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